Enquanto houver o cheiro da terra molhada¹, por Pako Jacutinga²

 

Não comia a cal das paredes como Rebeca de Gabo, mas era na cozinha que não nos nutríamos apenas de alimentos para o estômago. Durante as tempestades de janeiro, nos refugiávamos ali. Era o único cômodo da antiga moradia de minha avó que nos trazia a segurança da sobrevivência. Porque seu teto não era feito de telhas de amianto, como o restante da casa, e sim de uma laje que poderia resistir a qualquer queda de um grande galho pesado de uma das árvores decenárias a nos circundar. As férias escolares vividas na antiga casa da minha avó Carmem lembravam-me o sabor das páginas de Cem anos de solidão.

O coral das cigarras entoava as notas de pouco em pouco nas tardes quentes e claras. A carambola era uma das iguarias preferidas de meu melhor amigo de infância e também da minha avó e dos filhos, meus tios. Nunca fui muito fã de seu sabor, mas reconheço e a respeito como uma fruta peculiar, a única conhecida por seu formato estelar. Algo bem curioso para os que nunca a viram cortada. Naquele lugarejo imenso para mim, uma criança em crescimento, habita também um flamboiã, hoje com cinquenta ou sessenta anos.

Os alimentos para nosso espírito eram ofertados pela senhora de olhos esverdeados e elegância nas expressões e gestos. Contava-nos causos do vovô que não chegamos a conhecer. Eu e meu primo ouvíamos tudo atentos. Era um verdadeiro banquete de histórias. Além de nos contar sobre as alegrias e sacrifícios de sua vida e de nossos ancestrais, distraía-nos dos sons dos trovões e do medo das quedas de galhos, da ausência de energia elétrica e nos confortava através de suas doces e firmes palavras. Ela, uma senhora, que na minha infância, vivia seus sessenta e alguns anos de idade e cheia de vida.

Sabíamos sobre a presença de um sol de lascar na manhã seguinte antes mesmo de anoitecer. Isso quando não chovia. Quem cantavam eram as cigarras que a flora diversa residente no terreno abrigava. E então na orquestra cigarreira é que minha avó nos contava que faria sol e calor na dia seguinte. Mas, se elas não se reunissem antes do pôr do sol e as nuvens se acumulassem, a música seria outra, bem mais percussiva.

Até hoje sinto que enquanto houver o cheiro da terra molhada adentrando a casa antiga, surgirão sim as goteiras incessantemente a tocarem os baldes distribuídos pelos cômodos e a sinfonia das águas torrenciais inundando o quintal das bananeiras, dos flamboiães, do jamelão quase morto deitado, da amoreira, da laranjeira, da jaboticabeira, da caramboleira, do abacateiro, da roseira e da mangueira, da goiabeira, da taioba, das papoulas, do cajazeiro. Contudo, haverá, também, a insistente e resistente lembrança das mãos que os plantaram, que os colheram, que os comeram e a meus pais, aos meus avós, aos meus bisavós, serviram.

A água das chuvas preenchia de vida aquele pequeno lugar e refúgio da minha infância. Assistia com medo os fundos dessa área de natureza se preenchendo de luzes piscantes, águas revoltas e ventos travessos. Elas nos proporcionavam o contato de afeto presencial para ouvir a voz e as histórias de minha avó, especialmente nas tardes em que caíam com peso e derrubavam a energia elétrica do bairro. Rede elétrica frágil, ainda na era sem celulares, sem computadores e sem a velocidade e loucura das comunicações digitais, sustentava apenas a televisão à cores analógica de poucos canais, a geladeira e as lâmpadas amareladas.

Trovões e relâmpagos me causavam tantos medos e arrepios na espinha quanto as centenas de milhares de vidas abreviadas pela chuva da ignorância, em seus mais variados significados, tempestade viral invisível e a ausência de uma vacina, uma única vacina. A tal da civilização ignora, em grandes volumes de seus componentes, a necessidade de nos recolhermos a nossas cozinhas maternas. Como animais domados, castrados de qualquer valor milenar, continuam buscando suas ordenações vazias de significado durante um processo pandêmico ainda crescente.

Abrigar-se das tempestades, hoje, num tempo em que não vemos os galhos podres caindo em nossas cabeças, nem a chuva viral de microorganismos invisíveis é tomar a sábia decisão do distanciamento. Nossa força e sobrevivência se germinam através das raízes das nossas histórias, dos laços com essa terra mãe, das conversas e palavras alento partilhadas mesmo na distância física inerente ao problema do homem branco que assola uma já combalida Terra, Gaia, Pachamama…

Sobreviveremos não só em nossas histórias, mas por nossas histórias e através de nossas histórias. Trocando-as, partilhando-as, doando-as a esses homens brancos que sempre trouxeram a morte em seus navios, agora as entregaram de aviões. E, sobretudo, ensinaremos a eles o valor do respeito às tempestades. Somos filhos delas! Tupã nos criou a partir das tempestades. Somos filhos e descendentes diretos de uma grande tempestade, com trovões e relâmpagos assustadores.

E, talvez, Tupã esteja nos recriando. Devolvendo o caos ao homem branco que durante tanto séculos nos contamina e nos assassina com suas doenças causadas por elementos cujas origens esses mesmos homens brancos fingem ignorar: o distanciamento deles dos saberes milenares e sua insistência em desrespeitar seus criadores e nossa grande casa, a Terra. Pois é a partir dessa mesma terra que agora buscam a cura e a vacina para esse grande espírito de mudanças do qual as civilizações de todo o Planeta sofrem perturbações.

 

¹ Texto premiado em 3º lugar no concurso NHEENGATU – Fala bonita: CONCURSO LITERÁRIO PARA ESCRITORES INDÍGENAS, com o tema “Em tempos de isolamento: distantes, porém unidos”, uma iniciativa do Instituto Uk’a – Casa dos Saberes Ancestrais em parceria com a Livraria Maracá, em junho de 2020.

² Pablo Monteiro Nardi, Pako Jacutinga, é contador de histórias poéticas e ancestrais, roteirista de narrativas dramáticas, ensinador e também ensinamor através das literaturas e língua brasileira. Indígena Jacutinga nascido na floresta de concreto, não reconhecido pela FUNAI e IBGE. Professor da rede pública estadual do RJ na Baixada Fluminense. E ainda não virou uma estatística. Contato nas redes sociais: @pakokaiowa no Twitter e Instagram.